“Mais fortes são os poderes do povo!” – o audiovisual como ferramenta de luta

Parece temporalmente despropositada a evocação à obra marcante de Glauber Rocha, referência do Cinema Novo brasileiro. Não é! Trata-se do último grito de Corisco ao ser atingido por uma bala de Antônio das Mortes, o caçador de cangaceiros contratado pela oligarquia para dar um jeito nos rebeldes. A cena, rodada em 1963, é forte em simbologia e o filme em sua potência de resistência, que atravessa as décadas.

Lançado em 1964, logo após o golpe civil-militar que afundaria o Brasil em mais de 20 anos de ditadura, Deus e o Diabo na Terra do Sol fazia alegoria às diversas formas de enfrentamento buscadas pelas populações excluídas do sertão e as artimanhas dos arcaicos e provincianos senhores do poder na perpetuação de sua saga. Junto com outros filmes e produções, a película foi representativa de uma época de ebulição política, com considerável organização tanto na cidade quanto no campo (vide as Ligas Camponesas) e engajamento dos realizadores nos processos de transformação nas esferas cultural e política.

Em um grave quadro de tensão e ruptura, a arte, em especial o Cinema, não hesitaram em cumprir seu papel de posicionamento no momento histórico. Deus e o Diabo ganhou o mundo, levando a estética inovadora de Glauber e a bandeira dos “Condenados da Terra”, para usar um termo de Frantz Fanon que o diretor conheceria só depois, ao cruzar os mares e instigar curiosidade e rebeldia por onde passou.

Mais de cinquenta anos depois, vivemos novamente um cenário de acirramento das disputas políticas e ascensão de um ideário conservador, com uma diferenciação na modalidade operativa de golpe nas instituições dirigentes nacionais. Sob a batuta da grande mídia, de empresários e investidores financeiros, os poderes da república se curvam e implementam um projeto de devassa no erário, patrimônio e serviço público, além da perseguição desmedida a opositores, mesmo que alegadamente dentro dos “trâmites legais”.

Em um exercício comparativo entre a realidade dos anos de 63 e 64 e a nossa atual, veremos claramente que uma das coisas que não mudou é o enorme abismo social e econômico entre a grande maioria da população e os 5% mais ricos do país. Pior, esta realidade de desigualdade até se ampliou, mesmo com as tímidas políticas afirmativas de inclusão e a inserção de um grande contingente populacional ao consumo, promovidas nos últimos governos. O Brasil se afirmou como o país da desigualdade.

Outra coisa que não mudou é o papel das elaborações e produções artísticas e culturais nas disputas por representação e narrativas. A realização audiovisual é fundamental neste ponto, ainda mais em um mundo altamente conectado, em que os conteúdos circulam com mais facilidade que há décadas atrás.

 

A urgência, tanto de produtores quanto de produções engajadas, talvez seja a mesma, mas com uma escala incomparável, com uma possibilidade de acesso a equipamentos e a uma distribuição inimaginável aos cineastas que montavam películas no tempo de Glauber. Também pode se diferenciar a questão da autoria, sendo que hoje em dia muitos coletivos assinam produções.

Assim, o Cinema e o Audiovisual podem se converter em ferramenta de resistência, de luta, de disputa das narrativas que buscam imprimir no imaginário social perspectivas marginalizadas pelos veículos hegemônicos, diminuídas no processo de construção de valores e validação dos acontecimentos na sociedade.

Tomemos como exemplo as Jornadas de Junho de 2013, o seu potencial rebelde, contestador e transformador presente em milhares de impressões audiovisuais dispersas, algumas delas mais elaboradas e efetivas, e a pasteurização e condução dos grandes meios de comunicação que passaram a estabelecer uma narrativa de acordo aos seus interesses. O que sobrou de resistência de 2013 é o que se produziu contra-hegemonicamente. O resto serviu ao conservadorismo e ao golpe.

Resistência é o que não falta no Brasil. A relação dialética é certeira, como afirma o rapper e educador popular Markão Aborígine em sua canção manifesto: “Enquanto houver opressão e violência haverá luta e resistência”. E estas marcas profundas da realidade nacional sobrevivem há 518 anos.

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Lançando mão de câmeras, celulares e computadores portáteis, sem a ilusão de que a tecnologia seja neutra, indígenas, feministas, a juventude negra periférica, estudantes, trabalhadores e experientes cineastas podem efetivar o Audiovisual como uma importante ferramenta de luta, com muita criatividade, às vezes com abordagens mais explícitas, em outras com pegadas mais experimentais ou que enveredem caminhos mais simbólicos.

Importante é afastar o fantasma da isenção, o discurso sedutor da arte distanciada da realidade, uma espécie de capitulação que ao final fortalece as estruturas do poder estabelecido e que perpetua as desigualdades já descritas acima.

Outro papel importante que pode ser assumido pelos realizadores audiovisuais é o compromisso com a partilha do conhecimento e técnicas em processos formativos horizontais, participativos e emancipatórios, multiplicando assim as possibilidades de perspectivas e os focos de resistência. São vários os exemplos nos tempos recentes, como o projeto Vídeo nas Aldeias, Cultura Digital, Movimento do Vídeo Popular, diversas experiências de midiativismo e projetos de formação envolvendo princípios de educação popular e produção audiovisual, como o Observatório da Criança e Adolescente (OCA) na Cidade Estrutural.

As possibilidades são inesgotáveis, podendo envolver distintos agentes, formatos e abordagens, estabelecendo ligações e formulações estéticas criativas entre a subjetividade dos realizadores e a realidade concreta. É inscrever no tempo as vozes e olhares populares, é resgatar a dignidade dos excluídos com a beleza da vida, da diversidade nas representações através do Audiovisual e do Cinema.

Diante da realidade de perda de direitos e retrocesso em que passa o país, um péssimo e mal-ajambrado remake de 1964 – quando foi lançado o Deus e o Diabo – mas com inserções crossover de Terra em Transe, de 1967, é mais do que passada a hora do Cinema assumir seu lugar histórico na disputa política e imprimir a resistência definitivamente na esfera pública.

Que proliferem as mensagens de que a sociedade não aceita nenhum direito a menos e não tolera crimes hediondos, como o assassinato de Marielle e Anderson ocorrido no último mês de março, muito menos o alarmante extermínio da juventude negra no país.

Que o Cinema encampe a boa luta, a luta por justiça, a luta dos de baixo. Afinal, como a lição que Glauber nos deixou através do grito do cangaceiro Corisco: mais fortes são os poderes do povo!


Por Diego Mendonça: realizador audiovisual, educador popular

e mestre em Direitos Humanos pela UnB.