Homenageado 13ª edição: Entrevista com Ivaldo Cavalcante

Quem pesquisar registros fotográficos da história de Taguatinga ou do cenário político e militante em Brasília com certeza vai chegar nas fotografias de Ivaldo Cavalcante. Também conhecido como Kabeça, apelido que ganhou ainda na juventude da década de 70, Ivaldo é uma das figuras emblemáticas de Taguá, daquelas que não só habitam a cidade, mas fazem dela mais viva, mais pulsante, mostrando para o mundo que a capital do Brasil não é só as asas do avião.

Nascido em Crateús (CE), em 1956, Ivaldo chegou em Taguatinga aos 4 anos de idade. Veio como muitas outras famílias retirantes, em um pau de arara com os pais e mais seis irmãos. Por aqui, foi crescendo e viveu um pouco da dura realidade dos muitos sonhadores que fizeram nascer as cidades satélites do DF. Foi engraxate, vendedor de jornal… se virou como pode. Na juventude, em meio a becos, praças e espaços underground, encontrou e se encantou com a fotografia, arte transformada em profissão, marcando seu nome no fotojornalismo mundial.

O trabalho de Ivaldo voa o mundo, feito águia, enquanto ele firma raízes em Taguá, na cidade que o escolheu. Foto: Sabrina Moura


 
Enquanto Kabeça, foi um caminhante voraz nas noites underground das décadas de 70 e 80. Registrou e registra cenas marcantes do cenário político, dos movimentos de resistência e das desigualdades sociais da capital do país. Seu caminho profissional na fotografia começou em 1980, levando-o a trabalhar para os principais jornais do DF. Ganhou vários prêmios nacionais e internacionais e fez exposições no Brasil e no exterior, nunca deixando Taguatinga como a cidade que escolheu para viver e realizar sonhos.

Parte do seu acervo está registrado em dois livros fotográficos publicados: Taguatinga, duas décadas de cultura (2003), com momentos do movimento cultural que resistiu à ditadura, e Brasília – 25 anos de fotojornalismo (2011), onde seu olhar volta-se aos acontecimentos e desacontecimentos do cenário político da capital. Seu olhar também foi parar nas telas, em minidocumentários produzidos com celular. Em 2014, seu curta O meu nome é Fábio recebeu menção honrosa no Festaguá. Talvez pela proximidade com as redações, em 2000, Ivaldo criou ainda o site Olho de Águia, onde divulga eventos e produções culturais da cidade.

Indo além das páginas, telas e internet, o fotojornalista também cultiva um espaço cultural na Praça da CNF, batizado de Galeria Olho de Águia. Criada em 2002, foi idealizada para abrigar seu acervo fotográfico, tornando-se muito maior. É hoje um local de troca de ideias e experiências, dividindo espaço com o Bar Faixa de Gaza. Num clima rock’n roll, que lembra bem a estética beatnik de Jack Kerouac, a galeria acolhe exposições, mostras de filmes, feiras fotográficas, pocket shows, encontros e prosas entre amigos.

Se o movimento está em nós, Ivaldo é um sopro de realização que levanta o barro vermelho do chão cerratense registrando o presente. Um ser que faz jus a homenagem que prestamos no 13º Festaguá. Confira, abaixo, entrevista com esse célebre taguatinguense de coração!

Ivaldo com o livro “Taguatinga – Duas Décadas de Cultura”. Ao fundo, fotografia de Jimmy Page, amigo e guitarrista do Led Zeppelin, com o livro “Brasília – 25 Anos de Fotojornalismo”. Foto: Sabrina Moura


 
 
Festival: Você nasceu no Ceará e mora em Taguá desde criança. Um legítimo representante das famílias nordestinas que vieram para o centro do país em busca de sonhos. Qual a sua percepção e o seu sentimento sobre essa cidade que te acolheu?
 
Sou ser 100% bairrista! Aqui, em Taguatinga, fui engraxate, vendedor de pirulito e de picolé, vendi jornais nas ruas da Shis–Sul e no centro de Taguatinga. Na minha adolescência, morei e trabalhei no Mercado Sul, na Sorveteria Polar, do meu querido cunhado, onde descobri a serigrafia e montei meu primeiro laboratório fotográfico e oficina. A fotografia foi chegando através de um grande amigo e irmão chamado Aurelino, que me presenteou um kit de laboratório fotográfico.
 
 
Festival: Na sua juventude, você foi envolvido em movimentos sociais, na cena underground e militância? Conta um pouco dessa experiência?
 
Depois que ganhei esse kit de laboratório, passei a fotografar as cenas alternativas de Taguatinga e me doei durante anos fotografando todos os movimentos e tudo que se movia na cidade. Acompanhei grupos de teatro como Grupo Retalhos e Celeiro das Antas e fui testemunha ocular de todos os festivais Rola Pedra e da Faculta, além de fotografar também os cineclubes e eventos no Teatro da Praça. Fiz tudo isso até chegar no fotojornalismo, meu caminho natural neste percurso. Aí é outra história! Houve muitas pedras no caminho, mas chutei todas.
 
 
Festival: Como você chegou no fotojornalismo enquanto profissão?
 
Quando morava no Mercado Sul, no ano de 77, o Willian, da Sarro Disco Show, ficou sabendo que eu estava fazendo um curso de fotografia no Centro de Criatividade, hoje Espaço Cultural Renato Russo, e me pediu pra fotografar as domingueiras que tinha no Clube dos 200. Um dia, vi uma equipe do Jornal de Brasília vindo fotografar umas das domingueira do clube e vi que para eles entrarem bastava só mostrar a credencial do jornal. Daí em diante descobri que queria ser fotojornalista!
 
 
Festival: Há quem diga que a imprensa morreu. Diante das mudanças e avanços nas novas tecnologias, e num comparativo a toda sua experiência nessas quatro décadas na área, como você vê a profissão do fotojornalista nesse cenário cada vez mais digital e efêmero?
 
Trabalhei durante 33 anos em jornais. A imprensa mudou muito e nessa época já havia um grande sensor de todos os jornalistas, os editores sempre usavam as tesouradas nas matérias feitas. Hoje nem se fala! Esse quarto poder apodreceu e esqueceu de cair. O povo brasileiro sempre foi manipulado pelos donos dos grandes jornalecos.
 
 
Festival: Seu livro Taguatinga – Duas décadas de Cultura é um marco para os habitantes e fazedores de cultura de Taguá. Muitos dos lugares e figuras fotografadas ali seguem, até hoje, atuantes e vibrantes na cena cultural da cidade. Taguatinga respira cultura? Que cultura é essa?
 
Hoje fico muito feliz em continuar fotografando essa rapaziada, que hoje estão todos carecas, barrigudos e de cabelos brancos.Tem uma frase do cantor e músico Belchior que gosto: “O novo sempre vem”. Demorou aparecer esse novo, mas hoje eles chegaram e estão em forma de coletivos poéticos, estão na música, na imprensa alternativa e em todas vertentes culturais. Isso em todo o país. A periferia hoje tem mais voz e continuará tendo. Acredito que com essa eleição que se aproxima haverá uma grande mudança.
 

Fotojornalismo e militância registrados em livros. Foto: Sabrina Moura


 
 
Festival: Você acompanhou e registrou grande parte da trajetória política de Brasília e do Brasil, nas últimas quatro décadas, um trabalho nítido no seu livro Brasília – 25 Anos de Fotojornalismo. Muitos dos seus registros permeiam um tempo de ditadura e pós-ditadura. De lá até os dias de hoje, num Brasil em tempos de golpe, como você analisa a situação política do nosso país?
 
Costumo dizer que esse livro é meu gibi, que vai contando histórias através de registros fotográficos de uma Brasília onde, há décadas, jogam a sujeira debaixo do tapete. Fico feliz em ter realizado e editado ele. É uma overdose de imagens sobre a problemática social que sempre foi minha tônica no fotojornalismo. O Brasil hoje está à deriva depois deste golpe. Estamos vendo um país sendo desconstruído pelos políticos sem nenhuma moral ética, uma verdadeira quadrilha que vinha se articulando nos porões da corrupção durante os governo do PT. Hoje, no pós-golpe, há milhares de empresas fechando, milhares de pessoas desempregadas. Os trabalhos informais estão crescendo assustadoramente em todo país.
 
 
Festival: Outro foco do seu olhar de fotojornalista é a vulnerabilidade social dos meninos e meninas de rua. Como é a relação de registrar essa realidade? Você se envolve emocionalmente na história deles?
 
Há três décadas que acompanho essa problemática social, onde fotografo e filmo. Sempre usei a rodoviária de Brasilia e os vários pontos que tem muitos de meninos e meninas de rua como extensão da redação. No fotojornalismo, sempre gostei de temáticas pesadas. Hoje, migrei para os documentários e é muito bom trabalhar com imagens em movimento. Não tem como não se envolver. As riquezas-humanas das ruas são esplêndidas. Esse texto, do Poeta baiano Jorge Amado, dialoga muito com meu trabalho:

“Que outra coisa tenho sido senão um romancista de putas e vagabundos? Se alguma beleza existe no que escrevi provém desses despossuídos, dessas mulheres marcadas com ferro em brasa, os que estão na fímbria da morte, no último escalão do abandono. Na literatura e na vida, sinto-me cada vez mais distante dos líderes e dos heróis, mais perto daqueles que todos os regimes e todas as sociedades desprezam, repelem e condenam.”

 

 
Festival: Sua experiência de registro com os menores de rua culminaram na produção do premiado curta O Meu nome é Fábio, premiado com menção honrosa no Festival Taguatinga de Cinema, em 2014. Depois, em Qual é o seu lugar no mundo?, a temática dos moradores de rua volta às telas a partir do seu olhar. Você já pensava em se aventurar pelo Audiovisual? Como foi esse processo e porque falar deste tema?
 
Quando morava no Mercado Sul, na década de 70, ganhei de um irmão um livro que o Pasquim tinha lançado com todas as linguagens das artes. Eu já havia me enveredado pela serigrafia e um dos tópicos do livro era sobre cinema. Li todas as páginas sobre o assunto, mas era uma época que realizar filmes e só para filhos de banqueiros.Nessa mesma época, lançaram a Revista Iris-Foto, que também tinha duas páginas sobre Super-8. A partir daí, entrei nesse universo e acabei fazendo o roteiro de um doc de ficção chamado “Joana”, sobre uma mina da periferia e seus medos diante do mundo.O doc enfoca do baixo Tagua Wall aos cabarés do centro, tendo Joana como personagem principal.

Quando consegui entrar nos jornais diários, sempre levava uma filmadora VHS na bolsa. Passei a filmar essa problemática social. Acho ‘du-carai’ a democratização desse universo digital. O doc O meu nome é Fábio foi feito com um celular. Vida longa a todos esses aplicativos.
 
 
Festival: Há anos você vem cultivando a Galeria Olho de Águia, que hoje é um reduto cultural da cidade e da Praça da CNF, cheia de histórias e parceiros. Qual a inspiração e os objetivos para a criação da Galeria e quais projetos estão em andamento no momento?
 
Pois é… Taguatinga sempre foi a vanguarda das satélites. Tínhamos o Butiquim Blues, do Marcinho, que depois veio a ser da Lazinha, o Teatro de Bolso Rola Pedra o Teatro da Praça, que ainda está em atividades. Então eu tinha que realizar algo a altura desses espaços. A Galeria é hoje um incubadora, uma trincheira de resistência cultural! Por lá rola muito da cena produzida nas satélites, como palestras sobre gestão cultural, coletivos e saraus poéticos, mesa-redonda sobre música autoral, performances, debates políticos, etc. A Galeria é hoje minha caverna do século XXl. Temos quatro projetos independentes em funcionamento: Cineclube Praça do Relógio, Biblioteca Gervásio Baptista, Voz e Violão para Músicos Autorais e Artista do Bairro. A cada 15 dias rola também abertura de exposições.
 

Bar Faixa de Gaza e Galeria Olho de Águia, dois espaços em um, congregando arte e encontros. Foto: Sabrina Moura


 
 
Festival: Em 2012, você realizou o projeto Imagem Sem Fronteiras, trazendo para Taguatinga exposições e fotojornalistas de várias partes do mundo. Ao mesmo tempo, suas fotos já foram expostas e premiadas internacionalmente. A imagem é realmente sem fronteiras? O que a fotografia representa na sua vida?
 
O Projeto imagens Sem Fronteiras é único na galeria realizado com financiamento, nesse caso, do Fundo de Apoio à Cultura do DF. Realizamos em 2012 e fomos aprovados também em 2016, deixando para realizar agora, em 2018. O projeto iniciará agora em setembro e vai até novembro. De confirmados, teremos Pep Bonet, da Agência Noor, e o espanhol Ricardo Garcia Villa Nova. São sem dúvida nenhuma um dos melhores deste século.

A fotografia é sim sem fronteiras e também liberta como todas as artes. Para mim, ela representa o cotidiano. A fotografia é a reflexão do mundo.

 

Por Keyane Dias – jornalista cultural, poeta, terapeuta
e co-criadora da
Pareia Comunicação e Cultural