Homenageada 13ª edição: Entrevista com Marília Abreu

Marília Abreu é uma mulher de referência na cena artística local. É atriz, palhaça, gestora e produtora cultural, militante, professora, mãe e empreendedora social. Nascida e crescida no Plano Piloto, há anos escolheu a cidade de Samambaia para viver, fazer arte e ser mãe. Lá, co-criou o Imaginário Cultural, espaço de florescimento e resistência, onde são desenvolvidas diversas atividades na quadra 103.

Em conjunto a outras dezenas de agentes culturais, Marília participa ativamente das ações em prol da construção do Complexo Cultural de Samambaia e da produção do Sarau Complexo, realizado mensalmente em vários pontos da cidade, agregando diferentes manifestações artísticas que florescem por lá.

Como produtora, recentemente executou o Brasília Junina, um mega evento que impulsionou o trabalho do Imaginário e inovou no âmbito de Competições de Quadrilhas Juninas, priorizando a visão do público e atendendo aos quadrilheiros de forma mais afetiva.

Em meio a todas essas frentes, Marília Abreu ainda encontra tempo para atuar ao lado de sua filha, Maria Clara, na Cia Roupa de Ensaio. Em 2018, lançou o espetáculo Dona Dinha, obra inspirada nas mulheres do interior de Goiás – religiosas, benzedeiras, mães, avós e bisavós. A sabedoria feminina foi representada através de músicas, histórias, causos e lendas goianas. Em 2017, atuou também no projeto de pesquisa A Chegada do Mamulengo no Reino do Cavalo Marinho, criado pelo amigo Chico Simões.

Confira, na entrevista abaixo, um pouco do fantástico mundo dessa mulher cheia de histórias, que cria e recria o movimento em nós com afetos e criatividade!

Ao lado da filha Maria Clara, no espetáculo Dona Dinha – 2018. Foto: Lucas Viana


 
Festival: Marília, você nasceu e cresceu no Plano Piloto, mas em um determinado momento as coisas mudaram e Samambaia se tornou seu lar e espaço de criação. Foi Samambaia que te escolheu ou você que escolheu Samambaia?
 
Na verdade, acho que as duas coisas. Conheci Samambaia em 1999, através da minha amiga Verônica Moreno, ela também é atriz e tinha um amor incondicional pela cidade. Eu, na verdade, ainda tinha aquela visão preconceituosa de quem morava no Plano Piloto, via tudo como uma invasão, muita doação de lote e um crescimento desordenado que traria prejuízo ao Distrito Federal. Eu não conhecia Samambaia até a Verônica me convidar para ir na casa dela e ver a Via Sacra e o Movimento Junino na cidade. Quando eu vim, já não era uma menina só Plano Piloto e já tinha muitos amigos de todos os lugares. Logo, tive muita simpatia, mesmo a cidade ainda estando bem no início, era 1999.

Em 2001, conheci meu ex-companheiro, que também era de Samambaia, e fizemos um “contrato” de experimentar morar aqui e no Plano. Tanto eu quanto ele tínhamos uma atuação de comunidade. Antes mesmo de chegar aqui eu já comecei a me engajar. Em 2008, nesse teste, acabei decidindo ficar com o desejo de constituir um lugar… A Via Sacra era um projeto muito apaixonante que participei e dele nasceram muitos artistas, principalmente das artes cênicas… Viemos com “mala, cuia, menino, papagaio, boneco, empanada e figurino.” Na verdade, não sei se foi a cidade que me escolheu ou eu que escolhi. Sinto que foi o movimento da vida mesmo. Eu vim inteira, queria morar aqui, trabalhar aqui e ver minha filha estudando aqui.
 
 
Festival: Hoje, você coordena o espaço Imaginário Cultural, que é uma referência para o movimento cultural de Samambaia e do Distrito Federal. Como tudo começou?
 
Em 2011, a gente inaugurou o Imaginário. Sempre tivemos vontade de ter um espaço para ensaio e em Samambaia não existia nenhum equipamento público de cultura… Tínhamos vontade de realizar isso para ajudar a movimentar o cenário cultural, apesar de Samambaia já ter um movimento efervescente em diversas linguagens. Pensávamos em formação de público, tudo com foco no teatro. Não tínhamos a dimensão do que o Imaginário seria hoje. Empreendemos de forma intuitiva, pensando em ofertar aulas para a comunidade, formar público e conectar os colegas de profissão para trazer espetáculos para a cidade. Intuitivamente, criamos uma rede através dos contatos com artistas e produtores que já conhecíamos e levamos novos espetáculos para Samambaia.

Espaço Imaginágio Cultura, na Quadra 103 da Samambaia Sul. Foto: Sabrina Moura


 
 
Festival: O Complexo Cultural está prestes a ser uma realidade em Samambaia, cidade que, cada vez mais, se fortalece culturalmente. É forte a articulação dos artistas na cidade? Existe uma cultura bairrista?
 
O movimento cultural de Samambaia conseguiu se articular muito bem e isso é devido a atuação de alguns agentes. Sabe quando você tá no lugar certo com as pessoas certas? Mas eu acho também que a cidade tem essa identidade, porque os os artistas daqui acabaram sendo bairristas mesmo, vendo a cidade como uma referência cultural potente no DF. E a gente conseguiu agregar várias linguagens. O projeto do Complexo Cultural e o Sarau Complexo está criando uma identidade cultural na cidade.
 
 
Festival: Qual a contribuição do Imaginário e da Marília no desenvolvimento cultural de Samamba?
 
Era uma coisa que a gente acreditava e ajudou a concretizar. E ajudamos ainda, tanto que fomos por bastante tempo líderes e fazedores (eu e Miguel). Cansei de fazer cachorro quente e galinhada em casa para levar para as reuniões, saraus e acampamentos. A gente se dispõe efetivamente para a realização, porque acreditamos que primeiro é possível e segundo é necessário.
 
 
Festival: E Roupa de Ensaio… Como o grupo se integra à sua vida? Você já participava quando foi morar em Samambaia?
 
O Roupa de Ensaio nasceu de um convite do Ivan Chagas (diretor de teatro) e do Alexandre Neco (músico) para a gente montar um espetáculo que se chamava A vida é uma ópera. Foram vindo outras pessoas, inclusive a Verônica. Foi quando a gente se conheceu e conheci a Samambaia. Era um grupo de experimentação e pesquisa, fazíamos teatro de rua e espetáculo de teatro de bonecos. O nome foi criado depois que já existíamos como grupo, “Roupa de Ensaio”, fazendo referência ao rala da atuação.

Marília no espetáculo “A Chegada do Mamulengo no Reino do Cavalo Marinho” – 2017. Foto: Davi Mello


 
 
Festival: E como chegou a profissão de atriz?
 
Desde os sete anos. Sempre fui muito apaixonada por teatro, aquela coisa em escola, igreja, acho que todo mundo começa por aí. Na adolescência, eu sabia que aquilo estaria sempre na minha vida. O que me encanta em atuar é a possibilidade de viver outras vidas, os desafios da interpretação, isso de conhecer, construir e viver uma personagem que tem muito de você, mas não é você. Gosto do estudo mesmo, de aprofundar no estudo da personalidade, do psicológico emocional.
 
 
Festival: O que te fez fazer essa curva para a Educação Física e seguir a carreira de professora da rede pública?
 
Não me adaptei ao curso de Artes Cênicas na UnB. O ambiente do curso me fez não querer ficar. Sou geminiana e acho que, por isso, fiz uma curva e fui para a Educação Física. Eu era muito apaixonada pela natação e tinha um sonho em trabalhar com o público de alunos especiais. Como a Educação Artística não tinha um viés educacional para esse público, eu vi na Educação Física a possibilidade. Hoje, estar no Imaginário e ser atriz me preenche muito mais, mas eu escolho estar em sala de aula também, porque eu acho que consigo estabelecer uma outra relação com os estudantes. Agora, atendo jovens e adultos. Por meio das conversas, e não propriamente das aulas, eu consigo abrir uma perspectiva para esse público que, muitas vezes, vem de uma desestrutura. A aula, para mim, é o que menos importa, o que importa é a valorização do ser humano.

“Eu me coloco a serviço das pessoas, dos artistas, dos coletivos, dos estudantes e de quem quer que seja para esse encantamento com a arte transformadora.”

 
 
Festival: Como é para você gerenciar tantos fazeres enquanto mulher?
 
Eu tenho uma vida quádrupla, quíntupla… Hoje, sou atriz, gestora de um espaço cultural, professora, produtora cultural, militante cultural e faço parte do Conselho de Cultura. Como produtora, eu me sinto na obrigação de dar suporte aqueles que me procuram para tirar dúvidas sobre projetos. Na vida pessoal, também sinto essas múltiplas funções, porque sou mãe e, como muitas, assumo uma casa e uma família. É tanta coisa! Mas eu tenho isso na cabeça: “Não sou só eu.” Acho que nunca acontece um equilíbrio. Muitas vezes, deixo coisas para depois para poder terminar um projeto ou fazer uma reunião e a família sempre sofre com isso, tanto a gente como a família. A gente se cobra mas deixa rolar.. É sempre isso: me cobro, mas deixo rolar.
 
 
Festival: Qual a sua visão para o futuro?
 
A gente tem que empregar sentido no agora sem esquecer que existe um pra frente. O meu foco não tá lá na frente, ele tá aqui. Hoje, eu sinto falta de estar atuando mais como atriz. Uma das coisas que eu quero fazer e pretendo cada vez mais fazer é esse meu trabalho com Maria Clara, o espetáculo Dona Dinha.
 
 
Festival: Como nasceu o espetáculo?
 
A Dona Dinha é um desejo meu desde muito tempo, que nasceu de uma provocação do Chico Simões em uma brincadeira lá em Olhos D’água (GO). Eu sempre tive muita facilidade com o sotaque de Goiás, porque minha família tem muito parente em Goiás e uma amiga já tinha dito pra mim: “a sua essência como personagem é goiana”. Aquilo ficou na minha cabeça. Dona Dinha foi nascendo dessas conversas. É um projeto que está pulsante e quero mostrar para o Mundo, eu e minha filha, a Maria Clara. A gente já fez um trabalho juntas de palhaças que também quero retomar, com as personagens Biloca e Tampinha.
 
 
Festival: Maria Clara sempre esteve envolvida no seu fazer artístico. Como é a relação de mãe e filha em contraste com companheiras de cena?
 
A Maria Clara em teatro é muito disciplinada. Eu sempre fui muito disciplinada também, mas hoje em dia eu administrando várias frentes e acabo me indisciplinado um pouco. É muito bom ter elas como companheira de cena, a gente consegue dividir bem os papéis. Eu levo mais bronca do que dou (risos).

 
Festival: Quais suas referências femininas na cultura e na vida?
 
A Verônica sempre foi uma pessoa admirável, por toda a realidade de vida e pela conduta dela com tudo. Ela tem uma bondade absoluta, uma generosidade absoluta, é uma das pessoas mais admiráveis que conheci. Minha mãe, obviamente, também é. Minha mãe nunca me tolheu, nunca limitou minha atuação, sempre me incentivou e nunca roubou minha identidade. É uma pessoa admirável pela sua fortaleza, honestidade, pela sua bravura. Ela separou do meu pai quando eu tinha um ano, quer dizer, uma mulher separada naquele período, nos anos 70, criando cinco filhos sozinha, era uma mulher sensacional. Admiro muita gente na cultura. Tem a Narcha, minha amiga, colega de faculdade e atriz, uma pessoa de muita criatividade. Outra pessoa que inspira muito é a mãe do Miguel, meu-ex companheiro, a Dona Luza, que com toda simplicidade e condição de vida é de uma sabedoria muito profunda… E as mulheres da minha família de maneira geral. Falo isso na Dona Dinha, inclusive.
 
 
Festival: Como foi a experiência com o Brasília Junina?
 
O Brasília Junina, tanto pra mim quanto para o Imaginário, foi um salto absurdo. Fizemos a gestão de um recurso que nunca tivemos nas mãos e executamos um projeto grandioso em várias cidades. Pensamos muito no evento para o público e os quadrilheiros, levamos muita inovação, principalmente na arena, em vez de palco. Focamos muito sobre para quem é feito o evento: uma praça de alimentação mais aconchegante e com apresentações. Buscamos levar o acolhimento que o Imaginário realiza. No fim, recebemos muitos elogios e agradecimentos. Conseguir realizar um projeto desse de uma forma tranquila e com a responsabilidade que foi feita é a sensação de assinar o atestado de capacidade para enfrentar qualquer coisa que vier.
 
 
Festival: Este ano, o tema do festival Taguatinga de Cinema é “O movimento em nós”. Como você vê o florescer do imaginário nesse cenário?
 
Nesse momento, estamos na expectativa do que virá. Tememos pelo cenário político cercado de incertezas, mas seguimos firmes. É claro que onde há ação há florescência. Se existe ação, o florescer é certo. Mesmo que seja mais tímido, não deixa de atingir os objetivos. Dependendo do que virá, precisamos estar cada vez mais unidos e conectados com propósitos comuns entre artistas. Na arte, só pela coletividade se vence.
 

Por Raissa Miah – jornalista no Estúdio Gunga e Artista Urbana