“A diversidade encurrala as narrativas eurocêntricas hegemônicas e as narrativas negras fazem parte desse movimento global”

Nascido em Nanuque, na fronteira entre Bahia e Minas, Joel Zito Araújo é um importante cineasta e pesquisador negro brasileiro. Professor e premiado realizador audiovisual mineiro, ou baianeiro (como também gosta de ser chamado), dirige filmes sobre questões diaspóricas da pessoa negra no Brasil.

Das suas obras, em 2001, A Negação do Brasil foi premiado como melhor filme no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade (It’s all true) e como melhor roteiro no Festival de Recife; a ficção As Filhas do Vento (2005) recebeu 8 kikitos no Festival de Gramado e o documentário Cinderelas, lobos e um príncipe encantado (2009) recebeu, pela votação do público, prêmios de melhor filme e melhor diretor na 9ª edição do Festival Iberoamericano de Cinema de Sergipe. Seu último filme chama-se Raça (2013), narrativa que desnuda a democracia racial no Brasil.

Foto: Sumaya Lima


 
O cineasta realiza filmes que vão para o embate. Desconstroem imagens do eurocentrismo construídas pela grande mídia sobre a pessoa negra no país e aprofunda em suas histórias. Seu trabalho caminha na afirmação de uma diversidade que enfrenta padrões. Dialogam com um fenômeno social de revolução, viabilidade e visibilidade de outras vozes no cinema e na comunicação no mundo todo.

Joel Zito também é doutor em ciências da comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP e fez pós-doutorado no departamento de rádio, TV e cinema e no departamento de antropologia da University of Texas, em Austin, nos Estados Unidos. Pesquisador ativo, também já publicou os livros A Negação do Brasil – o negro na telenovela brasileira (2001) e O negro na TV pública (2010). Em meio a tantos movimentos desse cineasta, conseguimos uma pequena entrevista com ele para conversarmos um pouco sobre identidade e cinema negro. Confira!

 
Festaguá: Em 13 de maio, completamos 130 anos da Lei Áurea, sem reparações históricas, com abandono e marginalização do povo negro no Brasil. Promover narrativas negras é intervir nesse cenário?

É exatamente isso! Nós só vamos poder superar essas desigualdades a medida em que aqueles que estão sob condições de risco tiverem direitos e construírem suas narrativas, possuírem escolhas e fazerem parte desse momento da história da humanidade, em que são muitos o meios de desabituação de dívidas. Então isso é fundamental. Sem essa possibilidade, você não tem como mudar o cenário de desigualdade.

 
Festaguá: Qual é o papel do audiovisual na afirmação das identidades afro brasileiras?

O audiovisual é centrado na afirmação, na valorização ou na imposição da identidade. Todo audiovisual é assim. Se você pegar como exemplo o cinema de RKO (Radio Pictures) dos anos 50, estavam vendendo lá o modo de vida americano, estavam vendendo os valores dos Estados Unidos, da terra de oportunidades, o tipo de vida da classe média branca norte-americana. Na época, vendiam as geladeiras, os automóveis, a Coca-cola. Vendiam também a estética identitária, em que os bonitinhos eram brancos, de olhos claros. Então o cinema não tem como escapar da valorização de algum tipo de identidade.

A diferença agora é que a gente chegou em um ponto em que aqueles, o Norte, a parte da população que impunha sua identidade e seus valores – de que eles fossem mais humanos, como se os outros fossem não civilizados, distantes de um autopadrão estético de beleza e valores -, estão sendo questionados. Isso mostra o quanto é ideológico esse tipo de visão: tomar o branco, tomar a cultura ocidental como o evento humano e os outros como não humanos. Os outros como humanos atrasados, ou humanos feios.

Então, neste momento, vemos um cinema da diversidade, que reafirma histórias puramente humanas de amor, ódio, angústias, prazeres e alegrias em todos os lugares. Hoje temos um cenário do cinema mundial no qual você verá filmes sobre a história de guerra da Mongólia. Você verá uma série de amor da Coréia ou a história de pai com filho na África… Essa característica de hoje é que contextualiza todo esse momento. A diversidade encurrala as narrativas eurocêntricas hegemônicas e as narrativas negras fazem parte desse movimento global, em que o negro está consciente que ao longo da história ele foi uma peça fundamental da acumulação do capital, do crescimento do ocidente. O negro sabe que, para isso, ele foi transformado em enfeite, animal domesticado, cristianizado, escravizado. Neste momento, temos uma rebelião da afirmação do negro como ser humano e isso é fundamental.


 
Festaguá: Por que a criação e a experiência estética cinematográfica pela e sobre a população negra são indissociáveis de uma ação política?

Se a gente for somente objeto dos outros não teremos possibilidade de mudança, né? Mudança política. Então não estamos só reclamando para que os outros nos incorporem em suas produções, certo? Precisamos também da nossa autonomia para realizar as nossas produções. Nós queremos fazer, não só participar das produções dos outros. A ação política que queremos hoje é por essa capacidade de fazer. Não só de ter um determinado número de atores na Globo. Queremos autonomia de fazer, criar, dirigir os nossos filmes, séries de TV…
 

Festaguá: E como o senhor avalia esses espaços no Brasil?

Estamos conquistando levemente essa democracia. Eu mesmo, por exemplo, sou curador do Festival de Cinema Negro Zózimo Bulbul Brasil, África e Caribe. A cada ano, a cada edição do festival, aumenta exponencialmente o número de inscrições. Neste ano, por exemplo, temos 180 novos estilos de diretores e diretoras negras de curtas, médios e longas. Ano passado, foram de 107. Anteriormente 56. Então, de um ano para o outro dobrou e agora cresceu mais 50%, é um aumento incrível. O que eu observo é que a maior parte dessas produções são feitas com recursos próprios, com pouca ajuda do Estado e de editais. São realizados por crowdfunding, sabe, são meios associativos e autônomos para poderem assegurar isso. Isso ainda é um problema, mas é um problema que não desestimula, pelo contrário. Essa nova geração tem uma garra incrível.
 

Festaguá: O senhor pode falar mais dos desafios do cinema negro no Brasil?

O desafio fundamental que está posto é de ter acesso de forma democrática aos recursos existentes para fazermos cinema e audiovisual no país. É de ter os mesmos direitos, os mesmos acessos, pois essa nova geração e a geração anterior também tem dificuldade de alcançar recursos. Eu. por exemplo. Meu último filme foi lançado em 2012, o Raça. Estou há seis anos sem lançar um filme, considerando que sou um cara super produtivo e bem avaliado, premiado. Todos nós temos essa dificuldade de produção. O racismo institucional e o racismo cultural atrapalham os nossos acessos. Não estou falando de forma poética ou romântica. Ano passado, eu fui do júri de um festival afirmativo e a quantidade de bons roteiros foi grande, nós selecionamos três. Havia uns 12 muito bons, no meio de 70 e tantos, e havia outros que só precisavam trabalhar mais um pouco. Enfim, não estou falando de uma situação hipotética, estou falando que temos bons roteiristas, jovens criativos e diretores negros que precisam de oportunidades para atuarem. Vejo várias produtoras se preocupando com a formação, com a incorporação desses jovens, mas ainda são minoria.

Por Webert da Cruz – jornalista e fotógrafo do Estúdio Gunga