É nítido que a produção audiovisual no país ocupa espaços bem mais profundos que o viciado mercado e a indústria cultural. Ela também se apresenta como ferramenta política de resistência e transformação social na vida de diversas comunidades. Para entendermos um pouco mais desse movimento de narrativas populares e suas intervenções na realidade de um Brasil profundo, entrevistamos o pesquisador Wilq Vicente.
Wilq é mestre em Estudos Culturais pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). É pesquisador de vídeo, curador de mostras de cinema popular e organizador do livro: Quebrada? Cinema, Vídeo e Lutas Sociais.
Festival: Que espaços, além do cinema mercadológico e indústria cultural, o audiovisual ocupa atualmente?
Um dos desafios para se pensar os processos culturais na atualidade diz respeito ao entendimento de que existe uma efervescência cultural inédita que nas últimas décadas redefine o lugar do fazer artístico e cultural na cartografia brasileira. Acompanhando as mudanças verificadas na estrutura social brasileira, como a redução da extrema pobreza, a ampliação da classe C, entre outros, parece haver também mudanças estruturais no que tange ao consumo e produção cultural. Isso implica na ampliação, no reconhecimento e na maior visibilidade da apropriação dos mecanismos de realização e difusão audiovisual comunitária, popular e periférica, entre outros, pela população mais pobre do país.
Certamente, um movimento cultural consistente, insistente, diversificado e fragmentado, que vai ao encontro de iniciativas tímidas do poder público, do mercado e da sociedade civil organizada. Não espanta que a produção cultural da periferia tenha se tornado visível ao mesmo tempo que surgiram representações da periferia na televisão e no cinema, na indústria cultural de uma maneira geral. É sintomático que a indústria cultural tenha buscado dialogar com esse novo nicho, que representa a nova ordem social, onde o nacional popular e seu esforço de abarcar o todo da sociedade caminha para a incorporação da cultura popular periférica, a nova classe média e sua promessa de um país com menos pobreza, de um país em desenvolvimento.
Essas novas manifestações podem ser identificadas, em especial, por meio de novos atores sociais, movimentos culturais que partem da periferia dos grandes centros urbanos, em pequenas comunidades populares, e que lutam pela ampliação de suas representatividades. De modo geral, os realizadores assumem uma trajetória comum: emitem a condição crítica da experiência social e cotidiana.
Parte fundamental da expressão dessa cultura é o audiovisual como instrumento de mudança territorial na cidade, como instrumento de criação de redes de interlocução política e cultural, por vezes articulando uma postura de luta de classes, por vezes buscando uma inserção ainda que marginal em um ainda restrito mercado cultural, tensão permanente nas disputas desse campo. Hoje o audiovisual é visto cada vez mais como um setor que não está restrito ao dito cinema mercadológico e à indústria cultural, e também como uma ferramenta no interior de ações culturais e sociais. Algumas ações pontuais buscaram contemplar esse setor do audiovisual nos últimos anos, reconhecendo o papel formativo, social e de cidadania que exerce e visando o estímulo à “diversidade cultural” em boa parte do Brasil. Isto eu considero um ganho.
Festival: Por que a criação e a experiência estética de vídeos pela e sobre a periferia são indissociáveis de uma ação política? Qual a importância dos projetos de capacitação em audiovisual nas quebradas? Cite alguns.
A emergência de novos artistas e coletivos de produção e difusão cultural nas periferias introduz no cenário cultural um novo componente de disputa de significados e também de recursos e espaços. Obviamente essa disputa ainda se dá de maneira completamente desigual, reflexo de uma sociedade desigual. Com uma produção ainda incipiente, mas que tem tomado cada vez mais fôlego, estes novos produtores culturais buscam se apropriar de meios, ferramentas e conhecimentos que até então lhes foram negados. É possível notar que tanto o Estado quanto o mercado estão buscando fornecer respostas a este novo cenário, gerando uma tensão entre o fomento e a apropriação, às vezes através de políticas de caráter estruturante, às vezes através de medidas aquém da necessidade ou de pouca efetividade.
Seria a produção de audiovisual capaz de articular um discurso contra-hegemônico, que efetivamente traduz os interesses das periferias? Ou esta produção se enquadraria na ideologia dominante, que incorporou elementos dos interesses do povo, parecendo então representá-lo de uma maneira geral? O audiovisual feito na e pela periferia está posicionado em um campo de batalha cultural permanente, onde distintas alianças e forças se colocam para dar significados e respostas.
Neste aspecto, o audiovisual periférico surge como uma prática social que em sua forma se desenvolve através da arte e exercício da linguagem. De toda forma, a ideia de “nossa realidade representada por nós mesmos” se coloca o tempo todo como pauta da ação, apontando sobretudo para uma disputa cultural por representatividade. Almeja, sobretudo, vocalizar suas visões de mundo e experiências de vida através de um meio de expressão interpretado como fundamentalmente artístico e não somente no campo da comunicação. Assim, diferentes formas de produção, até vídeos realizados a partir de um olhar externo sobre as ações e manifestações, concebidos por realizadores independentes, são bem aceitos. Esse diferencial decorre do seu conteúdo, de vínculos que são estabelecidos com os bairros, territórios e movimentos abordados nas produções. Mais ainda: trata-se de engajar a vontade de indivíduos e grupos em uma ação política, o que implica em torná-los agentes de uma ação transformadora.
Como se trata de um setor ainda em expansão, de caráter cada vez mais dinâmico, acredito que a atuação neste campo da cultura demanda um permanente aprimoramento e qualificação dos saberes e práticas, um processo formativo e reflexivo continuado. Projetos de formação e capacitação em audiovisual nas quebradas contribuem para a ampliação das oportunidades de conhecimento, capacitam jovens no setor e promovem o fortalecimento e a difusão de novas narrativas e vozes. Diversas iniciativas de formação, ligadas aos grupos e coletivos periféricos e arranjos variados em ONGs e outras instituições atuam neste sentido.
Alguns projetos podem ainda vir a contribuir para a cadeia produtiva ligada às artes e à cultura em arranjos produtivos formais e não formais, no âmbito do Estado e nas instituições, no contexto da economia da cultura e da indústria cultural, como também na economia de base solidária. Em São Paulo, por exemplo, a SPcine desenvolveu o projeto “Sampa Cine Tec: Audiovisual, Cinema e Tecnologia”, que contemplou iniciativas de inclusão audiovisual, empreendedorismo criativo, associativismo, cooperativismo e atuação de redes na cidade. Com foco na periferia, priorizando a formação e a capacitação na área do audiovisual.
Festival: Como é o processo de formação de público para o cinema independente nas periferias?
A formação de público é um problema no audiovisual brasileiro como um todo, principalmente o realizado nas periferias. Os espaços de exibição para a produção periférica são, em geral, bem limitados, pois se resumem frequentemente a sessões em cineclubes e ONGs, havendo, portanto, uma distribuição e divulgação bastante restrita. São poucos ainda os filmes que conseguem entrar em festivais e que também dialogam com um público bastante específico.
Em anos recentes, o Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo articulou, conjuntamente com o poder público municipal, um “Circuito de Exibição de Vídeos Populares” com programação regular em cineclubes ligados a grupos culturais, ONGs, além de programação mensal na Sala Cine Olido, equipamento cultural no centro da cidade. O Coletivo também manteve programa na Rede TVT, ação que durou até meados de 2012. Foram projetos que buscavam sobretudo viabilizar a distribuição e exibição da produção, fortalecendo redes existentes e abrindo espaço para o diálogo com novos públicos.
São projetos que, apesar do vigor momentâneo, não tiveram sustentabilidade. Se por um lado é possível ver um recrudescimento recente de espaços de exibição alternativos, como o Circuito, por outro lado é possível notar, por parte do poder público, certa preocupação com a exibição da produção independente, ao menos na cidade de São Paulo. Em 2016, por exemplo, foi criado uma rede de salas de cinema pela prefeitura, com 20 espaços, com o intuito de formação de público, sobretudo nos bairros periféricos.
Também as políticas públicas de formação cultural e experimentação artística são fundamentais no processo de despertar o interesse para o cinema e fomentar o hábito cultural da população. Certamente, uma forma de tentar superar o “gargalo” da exibição é articular parcerias necessárias e possíveis com instituições. Também acho fundamental que os realizadores de audiovisual pensem em espaços e atividades alternativos de exibição, para além de festivais e das salas tradicionais.
Arte do site Coletivo Vídeo Popular
Um cenário preocupante está colocado para todo setor cultural e as lutas sociais como um todo, e é preciso enfrentá-los à altura dos desafios lançados. O fim de alguns programas sociais e culturais acende um sinal vermelho para quem pensa a cultura para além de um mero reflexo da realidade. A cultura está investida de um papel estratégico, no sentido da construção de um país socialmente mais justo. Em outras palavras: o golpe parlamentar de 2016 apresentou-se como uma volta do que havíamos relegado há pelo menos 30 anos atrás: censura, cortes nas políticas sociais, fortalecimento de um discurso conservador, entre outros.
Nota-se que ao longo da história brasileira o audiovisual, de maneira geral, desempenhou um importante papel de registro e difusão das lutas sociais, da memória e do imaginário popular ausentes dos meios hegemônicos. O audiovisual esteve sempre presente em ambientes de resistência política e cultural. A arte é justamente uma das formas de vislumbrar realidades que parecem impossíveis, experimentar e testar novas narrativas, que são ao mesmo tempo estéticas e políticas. E o audiovisual é, ainda, uma importante ferramenta de comunicar e difundir estas novas perspectivas, abordando aspectos da realidade que a narrativa oficial e os discursos conservadores em voga buscam suprimir.
Festival: Quais desafios a produção de vídeo independente e popular enfrenta hoje no Brasil?
O Estado tem buscado conceber a interação com os novos atores através da ótica da diversidade e da cidadania cultural, sendo o apoio através de editais uma das principais políticas. Também algumas entidades culturais privadas sem fins lucrativos têm atuado nesta ótica, fomentando a produção independente e popular principalmente através de suas linhas de programação cultural. Já o mercado vem buscando incorporar artistas, ainda que de maneira pontual, ou procurando incorporar essa “cultura de periferia” nas produções culturais hegemônicas, como se tem visto na TV, por exemplo. O que sugere a possibilidade de acomodação da perspectiva da “cultura da periferia” no status quo.
A sustentabilidade econômica da atividade cultural é uma das grandes questões para a diversidade atualmente. As linhas de fomento não são capazes de atender ao cada vez maior conjunto de iniciativas artísticas e a grande maioria delas não se viabiliza no mercado. As grandes instituições e espaços culturais tem se questionado cada vez mais do seu papel neste cenário. Como contribuir para o florescimento desta produção construída em grande parte à revelia dos espaços e instituições culturais tradicionais?
Nota-se que tal discurso abre espaço para uma nova ambiguidade, permitindo que distintas perspectivas muitas vezes apareçam aglutinadas dentro das mesmas denominações, ainda que estejam dentro de um campo de grande tensão. A produção de vídeo recente pode, desta forma, dialogar por um lado com o discurso oficial do Estado, por outro com a sociedade civil na figura dos movimentos sociais e de cultura de hoje, mas também com as ONGs e com o mercado. Garantir a sobrevivência, desenvolvimento e aprimoramento de iniciativas com independência artística e vigor estético, se posicionando neste campo complexo das forças políticas e econômicas em jogo é um enorme desafio.
Nos anos 80 e 90, eram ausentes políticas públicas específicas e recursos públicos de fomento para o setor, ao mesmo tempo em que surgiam uma série de movimentos sociais e populares de maior estruturação institucional que tinham o vídeo como ferramenta política, tal como aqueles aglutinados em torno da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP), que se construiu de maneira autônoma ao Estado e ao mercado.
Já ao longo da década de 2000, os editais de seleção de projetos tornaram-se o principal modelo de financiamento estatal à cultura no Brasil, ao lado das leis de incentivo fiscal, que se estabeleceram na década anterior. Tais ações do Estado acabam por atingir a relação entre duas esferas simbólicas básicas – o polo da indústria cultural e o polo da produção cultural popular, sendo o “popular” um termo que encampa disputas simbólicas pelo seu significado. Tendo isso em vista, vislumbra-se um cenário em que, no fundo, a política estatal de fomento à diversidade cultural através de programas e editais por um lado incentiva e viabiliza a produção, por outro promove um apaziguamento das tensões de classes sem mudanças efetivas nas estruturas de investimento, repasses de recurso e regulação do mercado por parte do Estado, mantendo se como sistema de natureza excludente. Desta forma, se por um lado há uma luta por políticas específicas para a produção do vídeo independente e popular, por outro não se pode perder de vista a natureza eminentemente excludente do Estado capitalista.
Festival: Como surgiu a ideia e aconteceu a produção do livro ‘Quebrada? Cinema, vídeo e lutas sociais’? É preciso também ocupar a academia?
A publicação é resultado de um conjunto de atividades, reflexões sobre a área da cultura e vivências que tive com o vídeo e que de alguma forma preencheram meus últimos anos. Tive o privilégio de acompanhar tentativas e erros. Nossas próprias limitações foram sendo superadas graças ao exercício de experimentar. Impossível, neste momento, não olhar para trás: reuniões, debates, coisas ditas, escritas e o surgimento e a realização de um conjunto de iniciativas.
Neste sentido, o livro atualiza um debate sobre a produção contemporânea popular, da quebrada e/ou da periferia, evidenciando o papel político e estético do audiovisual nas bordas. Buscando evidenciar uma escritura da quebrada e sobre a quebrada. Uma diversidade de leituras, sobre uma produção pautada pela luta afirmativa das diferenças, e, paradoxalmente suas singularidades. Um panorama plural no estilo e nos problemas levantados. Entrevistas e ensaios compõem uma espécie de caleidoscópio, dada as perspectivas, abordagens e agentes sociais mencionados.
A academia é ocupada majoritariamente por uma elite econômica e por uma classe média cultural que pesquisa e cria suas narrativas oficiais sobre a periferia e as nossas vidas. Como todo espaço de poder de narrativas, assim como o audiovisual, a academia tem pouco espaço para a participação e a cultura popular. Como espaço formativo e de elaboração de ideias e reflexões, é um espaço que deve entrar na disputa pelos significados. Ocupar para unir teoria e prática.
Festival: Quais filmes de referência produzidos nas quebradas você indica?
Faço uma cronologia de filmes produzidos nas quebradas e de fácil acesso (alguns disponíveis na internet). Boa sessão!
– Vaguei os livros e me sujei com a merda toda (doc. 2007), de Allan da Rosa, Mateus Subverso e Akins kinte
– Na real do real (doc. 2008), do Coletivo Favela Atitude;
– Videolência (doc. 2009), do Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA);
– Qual Centro? (doc. 2010), do Coletivo Nossa Tela;
– Jennifer (fic. 2012), de Renato Cândido;
– O Massacre de Pinheirinho: A verdade não mora ao lado (doc. 2012), do Coletivo de Comunicadores Populares de Campinas;
– Um salve doutor (fic. 2015), do Coletivo Mundo em Foco;
– Um dia no Ilè (doc. 2015), de Guilherme Cesar;
– Peripatético (fic. 2017), de Jéssica Queiroz.
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