Corpos e filmes que fazem a diferença

Nina Rodrigues

A trajetória do Festival Taguatinga de CInema está intrinsecamente ligada aos corpos que vibram na contramão do panorama de idealização da sociedade de consumo, desafiando tabus e o culto à padronização. Em sua relação com o mundo, esses corpos comunicam o “novo”. Ao assumirem-se como diferentes, fazem toda a diferença nesta realidade assombrada pelo fascismo recrudescente, atuando como forças de transformação. 

Close, curta-metragem de Rosane Gurgel

Ano após ano, nós acolhemos, por vocação e missão, filmes protagonizados por esses corpos transgressores que são centrais nas lutas de emancipação e na invenção de novas formas de resistir e enfrentar os desmandos e as violências estruturais deste Brasil em estado de exceção. São corpos que se apropriam das imagens de si e das narrativas cinematográficas contra-hegemônicas para anunciar um novo tempo. Corpos artistas, como no dizer da pesquisadora da USP Christine Greiner; corpos trans, homo e bissexuais, corpos não binários, negros, indígenas, corpos de pessoas com deficiência, corpos feministas. Ao insurgirem-se contra a ordem estabelecida e as relações de poder que limitam o seu campo de ação, esses corpos ditos periféricos escancaram a lógica e as estratégias perversas do capitalismo e fazem avançar as lutas por direitos e reconhecimento.

Eles povoam filmes como Maria, de Ellen Linth e Riane Nascimento, e Close, de Rosane Gurgel, nos quais relatam suas experiências cotidianas de perseguição, silenciamento, agressão e invisibilização, ao mesmo tempo que celebram conquistas e vitórias pessoais. Os  filmes que eles protagonizam emanam sua vivacidade e energia criativa; nos fazem lembrar o autoamor como instância fundamental do ser, sem o qual é impossível amar verdadeiramente o outro. Esses indivíduos e coletivos atuam na rota dos afetos e estendem sua potência tão longe quanto podem, produzindo humanidade, respondendo criativamente à violência dos espíritos antidemocráticos e obscurantistas do nosso tempo, buscando saídas, soluções, desvios poéticos. 

Os filmes que acolhem esses corpos e a eles oferecem lugar de destaque são capazes de mover sensibilidades na direção de ideais éticos e inclusivos, na rejeição de preconceitos, no engajamento político e social e na busca de alternativas para outro país possível. Assumem, eles próprios, em co-autoria com os corpos que os habitam, a missão de incitar mudanças e suscitar inquietudes sobre as fontes geradoras do conhecimento em nosso país, principalmente aquele conhecimento ligado às técnicas de controle e extermínio. Desse modo, oferecem ferramentas ao ciclo de lutas em curso. 

Este ano, diante do fascismo que corrói direitos arduamente conquistados e se põe ainda mais histérico por causa da pandemia do coronavírus, que ataca de modo incessante o meio ambiente, que provoca o aumento do feminicídio e incentiva ações policiais genocidas, principalmente contra as populações negras e indígenas, queremos oferecer, uma vez mais, em nome da dignidade humana, uma janela de exibição para aquela produção de curta-metragem nacional que é apoio para a diversidade de experiências, para as questões de raça e gênero, de representação e representatividade, para os direitos humanos e os direitos da Terra.

Acreditamos na força do encontro entre o público e filmes dessa natureza, no seu dom de nos fazer voar e cruzar abismos. Mesmo agora, quando a pandemia do coronavírus promove o nosso distanciamento físico, gerando mudanças e incertezas, o Festival Taguatinga de Cinema, honrando a missão que dá sentido à sua existência, preservará o liame afetivo entre público e o “cinema dos corpos artísticos”, tomando-os pela mão, ainda que apenas virtualmente e energeticamente, para que este ciclo virtuoso se mantenha e prospere, aconteça o que acontecer.

* Nina Rodrigues integra a Comissão Permanente de Curadoria do Festival Taguatinga de Cinema