A Transformação do Silêncio em Linguagem Cinematográfica e Ação

Por Marina Pontes

O título é uma interferência minha no texto “A Transformação do Silêncio em Linguagem e Ação”, da escritora Audre Lorde, proferido por ela em 1977, no painel “Lésbicas e Literatura” da Associação de Línguas Modernas, e publicado em vários livros da autora. Isto porque Sair do Armário, meu curta-metragem de 2018, só foi possível devido ao descobrimento desse texto, e devido a Audre. 

Eu costumo sempre contar a versão mais curta desse processo: eu precisava realizar um exercício de documentário para uma disciplina do meu curso de Cinema e Audiovisual (UFRB), e como eu já havia ultrapassado o prazo de entrega, precisava trabalhar com o que tinha em mãos: a urgência pessoal de falar com minha mãe sobre a minha sexualidade e um aplicativo de gravação de som no celular.

Colocando assim, faz parecer que foi um processo rápido e intuitivo, que suas escolhas técnicas não precisaram ser trabalhadas, não é? Acontece que não foi bem assim, e eu gostaria de utilizar esse espaço para desfazer essa ideia que, muitas das vezes, eu mesma reforcei, uma vez que a versão completa levaria algumas horas e muitas lágrimas.

Bom, eu poderia dizer que o processo de Sair do Armário começou na minha infância, quando escrevia cartinhas cheias de corações pra uma amiga que eu gostava até demais; aos 14 anos, quando ouvi pela primeira vez a palavra lésbica e sua definição; aos 17, quando meus pais descobriram minha primeira namorada; ou aos 21, quando, já na faculdade e longe de casa, contei para minha mãe por telefone.

Em todos os momentos – exceto na infância, onde eu não compreendia o sentimento daquelas cartas – eu senti medo. Além da sociedade como um todo, sou de família evangélica e, por consequência, sentir medo da punição, calar e consentir eram princípios muito bem cristalizados dentro de casa. Sempre tive uma comunicação melhor com minha mãe, mas nunca tratando de sexualidade.

Quando meus pais descobriram minha primeira namorada, por exemplo, eu temi apanhar e ser impedida de sair de casa. Eles ameaçaram me tirar da escola (eu e minha namorada estudávamos juntas) e de retirar meus meios de comunicação, além de demonstrarem desprezo e nojo. Por medo de ficar presa e longe de minha namorada, eu prometi que ia mudar. 

Para sobreviver, aprendi a me esconder melhor, a mentir melhor sobre aonde eu ia e com quem estava, e a comunicar o que eu precisava de forma que não deixasse meus pais furiosos: tom calmo e meigo, muitas das vezes apelando para uma expressão facial fofa e inocente, e jamais confrontando. Se eu identificava um tom de ameaça ou o início da raiva, recuava imediatamente. Do contrário, o resultado era gritos e objetos quebrados à minha volta.

Voilà, temos o tom da conversa no filme! Para além do respeito e amor que de fato existe entre mim e minha mãe, esse era o único tom possível para que o diálogo não saísse de controle. Eu não respondo quando ela diz que eu devo ficar sozinha ou quando – em um trecho que não coloquei no filme – ela me pede para nunca ter um filho com outra mulher, pois uma criança não tinha culpa de eu ser assim.

Esses eram momentos que qualquer palavra ou expressão errada, poderiam retirar a camada de respeito mútuo e dar lugar à hierarquia mãe e filha / Deus e pecado, que existe em contraste com o respeito e companheirismo que desenvolvemos em outras áreas de nossas vidas. Em Sair do Armário, eu escolhi o que dizer e como responder visando minha própria segurança.

É evidente que eu não tinha como ter certeza da reação de minha mãe e, posteriormente, a de meu pai, se eu dissesse tudo da forma exata, como eu gostaria. Entretanto, minha experiência com eles me ensinou a ter cuidad – um lar violento é sempre uma bomba relógio. Mas, voltando para a linha do tempo, eu tive que resolver todas minhas questões nesse caldeirão interno que cada uma de nós tem. Como diz Elisa Lucinda:

“Tá acostumada a viver por dentro, 

Transforma fato em elemento

A tudo refoga, ferve, frita

E ainda sangra tudo no próximo mês.” 

Peguei os elementos que fui conhecendo ao longo do tempo: feminismo, lesbianidade política, amor, amizade, aceitação, o próprio cinema brasileiro e misturei tudo aqui dentro. Deixei ferver, depois esfriar, e senti que ainda não estava pronta. Foi quando tentei contar para minha mãe por telefone, acreditando que meu empoderamento me protegeria. Saiu tudo meio torto, tudo no formato “mas e se eu for” ao invés de “mãe, eu sou”. 

Faltava alguma coisa. Todo o conhecimento que eu tinha adquirido não eliminou meu medo, e ler Audre Lorde foi como estar à deriva em alto mar e enxergar a torre de um farol piscando ao longe em uma ilha de compreensão. Eu não sabia como chegar lá, entretanto, tinha certeza que era para onde eu deveria ir. Um de meus trechos favoritos de “A Transformação do Silêncio em Linguagem e Ação” é: 

Questionar ou falar da maneira como eu acreditava poderia ter provocado dor, ou a morte. Mas todas nós estamos sofrendo de tantas maneiras o tempo todo, e a dor tampouco tem diminuído ou cessado. A morte, por outro lado, não é mais do que o silêncio final. E ela talvez chegue rápido, agora mesmo, antes que eu tenha dito o que preciso dizer. Ou enquanto eu traio a mim mesma pensando que algum dia falarei, ou esperando que outras o façam. (LORDE, 1977, p.1)

Audre afirma que cada uma de nós pode contornar os rostos de nossos próprios medos. Os meus têm faces de rejeição e violência, e eles não diminuíram ou cessaram por eu entender a homofobia como estrutura, me amar e aceitar por ser lésbica, compreender que eu não sou um ser humano menos digno por isso. O erro estava aí: acreditar que empoderamento é igual à ausência do medo. 

Audre me ensina a falar apesar do medo e minha voz é o Cinema. Transformei meu silêncio em filme, e gravá-lo foi minha ação – que mais tarde mobilizou muitas outras. Sair do Armário é o primeiro de minha trilogia estreante no Cinema Brasileiro e é também a prova de que, quando produzimos com o coração, tocamos outros. Assim como Audre tocou o meu, assim como Sair do Armário tocou o do Festival Taguatinga de Cinema.

 A trilogia é seguida do meu curta experimental Lésbica (2018) e, por fim, o ficcional E o que a gente faz agora? (2019), que estará presente no FesTaguá desse ano! Todos os três tratam da Lesbianidade, mas cada um focalizado em um aspecto da sexualidade: Sair do Armário sendo o aspecto familiar, Lésbica, o aspecto pessoal, e o E o que a gente faz agora?, o aspecto amoroso.

Esse último tem inspiração em um outro texto da Audre, mas isso eu deixo para contar pra vocês no debate do dia 15 de agosto, que farei com outros realizadores! Obrigada, Festival Taguatinga de Cinema, por todo o carinho, acolhimento, apoio e espaço. Vida longa ao Cinema Brasileiro, vida longa ao Festival que mudou a minha vida. 

MARI

  • Sair do Armário, o filme de estreia de Marina Pontes, participa da Mostra Convida 2020 e pode ser visto até domingo, 28 de junho, aqui no site do festival.