Olho para essa fala da Nina Simone e a percebo tão atual, tem um frescor de uma geração que perpassa seu recado a outra… gerações que parecem se conectar com causas históricas semelhantes, parecem compartilhar as mesmas frustrações políticas, os mesmos desejos de liberdade e justiça, com uma força de erguer o punho cerrado e ir pra luta. Aí me pergunto, em momentos em que a esperança parece nos faltar e a angústia de um tempo incerto aparenta nos sufocar, qual a forma que damos às nossas criações? Até que ponto, transformamos o que criamos em reflexos críticos do que vivemos?
A criação não precisa se limitar a padrões pré-estabelecidos, é fluida em forma e em significados. O processo criativo não se limita ao ser artista, pois qualquer um, meros mortais, tem sua potência criativa no que esculpimos como trabalho. No entanto, creio que o labor que se identifica com a necessidade de colocar pra fora um desejo inquieto vem a se transformar em arte. É por essas lentes que vejo o cinema brotando da criação para a tela, como uma faísca de luz que atravessa o realizador até chegar ao espectador. É poderosa essa relação entre filme e espectador, quando o filme (criação) coloca o espectador diante de um momento, de um tempo, de uma experiência latejante de um corpo projetado na tela, que afeta aquele que o experiência e o compartilha (o público). Nesse processo de ser afetado pela obra, o espectador se desloca no tempo e nas formas de olhar o que está em volta, fazendo-o repensar os variados mundos: os de dentro e os de fora.
Em curtas como Na missão com Kadu (2016), Peripatéticos (2017) e Tentei (2017), não há como negar os incômodos que se reproduzem na vida real. São filmes que expõe conflitos morais e políticos, que denunciam diversas formas de violência e desigualdade. Em Na missão…, Kadu nos conduz por uma câmera na mão a vivenciar um dos maiores conflitos fundiários urbano da América Latina. Como não se sensibilizar com o desespero de Kadu, correndo com uma criança em suas mãos, fugindo de balas e bombas, atacados pela polícia militar? Como não sentir a raiva da injustiça em seu desabafo diante da câmera?
Já em Peripatético, três jovens amigos, moradores da periferia de São Paulo, enfrentam os primeiros desafios da vida adulta: a busca por um emprego, a entrada na faculdade, um futuro em aberto… A luta contra a discriminação social e racial é visível em seus cotidianos, e se agrava quando um conflito armado na periferia que moram leva a morte um dos amigos. Como sair ileso de uma realidade onde jovens inocentes são assassinados, vítimas de uma violência gerada pela desigualdade que o cercam? E o que falar de Tentei, que retrata a tentativa de uma mulher em denunciar o marido por violência doméstica. O medo de se expor, a frieza do agente ao interrogá-la, o desespero de voltar para casa… Como não se questionar sobre essa realidade, mesmo percebendo-a tão próxima?
O cinema engajado em retratar os conflitos do nosso tempo também empodera protagonistas. Nos curtas documentários Toda noite, estarei lá (2017) e Cabelo Bom (2017), a resistência é existir. Em Toda noite, estarei lá, a transexual Mel Rosário, luta contra a intolerância e pelo direito de vivenciar sua fé na igreja, de onde foi expulsa por sua condição de gênero. Já em Cabelo Bom, mulheres negras mostram o empoderamento dos desses corpos políticos pela reafirmação da estética negra. Esses filmes destacam seus papéis políticos em dar a luz a realidades invisibilizadas e violentas, ao mesmo tempo em que libertam gritos calados e os transformam em vozes de (R)Existência.
Se tratando de produções independentes, autorais e no formato de curta-metragem, como no caso desses filmes, os festivais e mostras de cinema são considerados o ponto de partida na carreira das obras. São espaços que tem esse caráter de lançar, circular e legitimar a carreira dos filmes, acolhendo muitas vezes o primeiro encontro da obra com o público. Além disso, tem a capacidade de reunir um público amplo e diverso em suas dimensões culturais e de mediar as experiências iniciais entre os filmes e os espectadores.
Essas janelas tem um importante papel na formação do público, no que tange à sensibilização crítica por meio da ludicidade do cinema. Mas pergunto, que tipo de experiências os festivais estão proporcionando ao público? Estão comprometidos com a formação crítica de seus espectadores? Será que de fato pensam na sua contribuição política e humana? Essas questões particularmente me inquietam, pois vejo que a responsabilidade desses espaços se aproxima de agentes multiplicadores de conhecimento e informação, para além de dar visibilidade a uma cinematografia que atenda uma expectativa cinéfila. Deixo em aberto essas questões para que se mantenham vivas como uma bússola que norteia as direções no pensar e no fazer cinema.
Considero que precisa-se cada vez mais de janelas, obras e espectadores que tenha a disposição de se envolver com o todo, que exponham coragem de partilhar suas vivências e reflexões de mundo, se colocando sensíveis a olhar o que está por trás da estética e do entretenimento. Em tempos de crise, toda ação pode ser um ato político.
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