William Alves, organizador do Festival, comenta o filme “Tekoha”

Tekoha foi o grande vencedor da 12ª edição do Festival Taguatinga de Cinema. É um filme realizado por Rodrigo Arajeju e Valdelice Veron (Xamiri Nhupoty) rodado no Mato Grosso do Sul e conta a história de uma tribo Kaiowás que luta contra o agronegócio para se manter em suas terras e não perder suas raízes e tradições.

No filme, vemos um grupo de mulheres e crianças que cuidam de seus afazeres e também da transmissão de costumes. O espectador transita entre imagens que nos levam a uma espécie de paraíso, com natureza abundante, muita água, ruídos e pássaros cantando, flautas e assobios e imagens da devastação que avizinha a tribo.

Ao som desses elementos e elementais, vamos conhecendo aqueles que surgem em primeiro plano, primeira pessoa, vamos conhecendo os Kaiowás e a dura realidade a que estão submetidos.

A fotografia puxada para uma tonalidade mais terra, vai aos poucos se justificando, pois o que é apresentado ao público como cenário da narrativa é uma terra devastada, nua, sem vida, ocupada por máquinas, chaminés, tratores e monoculturas. Brasília surge como algo distante, um sonho, um lugar onde não há justiça para uma causa tão sofrida. É uma Brasília sombria, soturna e sem luz à causa dos Kaiowás.

É nesse cenário que tomamos contato com a luta desse povo da floresta, que vive na floresta, que depende da floresta, que é parte da floresta e que está, pouco a pouco, sendo destruído, não só pela força dos tratores, das maquinas, do agronegócio e das armas que já assassinaram seus caciques e irmãos, mas também pela força que se impõe sobre o seu modo de viver, sobre o Tekoha.

“Tekoha significa, literalmente, o lugar do modo de ser Guarani, sendo esta categoria modo de ser (tekó) entendida como um conjunto de preceitos para a vida, em consonância com os regramentos cosmológicos herdados pelos antigos guaranis. Não é possível ser guarani e seguir o tekó sem viver em um tekoá”.

A luta pela terra dos Kaiowás é a luta pelo Tekoha, é a luta pelo seu modo de existência em conjunto com o todo, com seu universo mítico, mágico, cheio de mistérios e de alegrias também.

Para nós que não compreendemos com profundidade o significado do Tekoha, podemos pensar que o Tekoha é a experiência de uma existência vivida pelos Kaiowás, essa é uma experiência de aprendizado, de troca, de respeito e se dá no dia a dia dos afazeres do grupo, na construção de seus lugares sagrados, na confecção de suas vestes e indumentárias, nas pinturas com símbolos carregados de significados e na troca de conhecimentos ancestrais entre os membros da tribo.

O filme Tekoha é um pouco disso tudo, com poder e força se estabelece em sua poética, no cuidado estético do som e da imagem, na forma como os personagens são abordados, apresentados, construídos e na possibilidade de um futuro diferente do presente, de um futuro expresso na imagem de uma criança Kaiowá sorrindo e correndo entre o limite da mata que ainda resta e a terra devastada.
Uma criança com seu objeto mágico abençoando e significando a luta desse povo.
Sonhar, sonhar, lutar, lutar, sem jamais desistir nem deixar de acreditar num futuro melhor.

Isso é uma das coisas que podemos ver no excelente filme Tekoha.

William Alves é realizador de filmes e integra a equipe que organiza o Festival Taguatinga de Cinema.

O filme Divina Luz de Ricardo Sá, do Espirito Santo, ficou entre os filmes escolhidos pelo Júri Oficial do Festival Taguatinga de Cinema, como os mais significativos dessa edição.

É um filme que reconstrói a imagem de uma das mulheres mais ousadas da década de 50, Dora Vivacqua, mais conhecida como “Luz Del Fuego”.

Dora foi uma mulher à frente de seu tempo, inspirou, nos anos 70 e 80 artistas que clamavam por mais liberdade, Rita Lee compôs em 70 a música “Luz del Fuego” e em 82 o diretor de cinema David Neves fez um longa-metragem com o mesmo nome.

Dora pregava a liberdade do ser, livre dos preconceitos comuns que ela considerava ser o fruto do atraso nas relações entre as pessoas. Escreveu o livro “A Verdade Nua” e foi uma das precursoras do nudismo no Brasil, tudo isso num pais onde não era permitido nem o uso de maiô nas praias brasileiras. Como artista, hipnotizava o Brasil dançando, seminua, com duas cobras durante suas apresentações.

O filme de Ricardo Sá, que pode ser considerado um ensaio audiovisual, cumpre bem a função ao reconstituir através de imagens de arquivo, fotos e filmes, parte da história de uma importante personagem brasileira. O gesto do cineasta na utilização de imagens de arquivos, destinados ao esquecimento é um gesto poderoso, pois imagens de arquivos muitas vezes carregam consigo sentidos que necessitam de outros elementos, imagens e temporalidades, textos e depoimentos para se reafirmarem.

Recentemente tive contato com a biografia do historiador francês Jacques Le Goff, e ele dizia “… o documento em muitos trabalhos artísticos, não é, em absoluto algo objetivo e inocente que expresse uma verdade sobre uma determinada época, mas aquilo que expressa, consciente ou inconsciente, o poder da sociedade do passado sobre a memória e o futuro. ”

Na apropriação de imagens, na recomposição de lugares e situações de outros tempos, de um tempo passado, Ricardo Sá produz não apenas a memória histórica e cinematográfica de um lugar e de uma personagem, mas também uma percepção de que essa memória não está congelada no tempo, que a história de “Divina Luz” e toda a violência contra a mulher sobrevivem e seguem firmes nos dias de hoje.

Mesmo assim, com toda a tensão gerada, percebemos que o ideal libertário sobrevive de algum modo, aos acontecimentos que tentam sufoca-lo e transformá-lo em algo menor, sem valor e sem a “Divina Luz”.

Nesse sentido, esse ensaio cinematográfico, esse filme de Ricardo Sá, se destaca pela abordagem do tema proposto pela 12ª edição do Festival Taguatinga de Cinema.

E como muito bem expressou nosso genial MC Guilherme: “Sonhar, sonhar, lutar, lutar, sem jamais desistir.

William Alves
Realizador de filmes, integra a equipe que organiza o Festival Taguatinga de Cinema.